O Brasil inteiro se acostumou a assistir, por anos a fio, notícias da violência que caracterizava a vida de uma de suas cidades: em qualquer canto desse país, todo mundo sabia que, no Rio de Janeiro, traficantes de drogas instalados nas favelas imprimiam um clima de guerra à população. Em 2009, o Brasil inteiro recebeu, com otimismo, o anúncio de uma política que expulsaria o tráfico, ‘pacificando’ as favelas cariocas. Cinco anos depois, esse mesmo Brasil inteiro assiste, na tela da
mesma TV, a cenas em que moradores dessas comunidades interditam ruas, queimam pneus em protesto e atacam a sede da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), chorando seus mortos – só que, agora, pela polícia. Depois de passar seis meses visitando, conhecendo e entrevistando pessoas de diversas favelas cariocas, Maria Helena Moreira Alves, professora aposentada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), acaba de lançar o livro ‘Vivendo no fogo cruzado’, que ajuda a entender esse processo. Nesta entrevista, ela explica que o projeto de pacificação que chegou ao Brasil tem origens num programa norte-americano que foi aplicado durante a Guerra do Vietnã e que tem semelhança com a experiência de outros países, como a Colômbia. Ela localiza na ditadura o início da construção de um inimigo interno, que hoje se identifica com as populações de favela. E alerta: as pessoas reagem quando começam
a perder seus filhos. Maria Helena lançou o livro "Vivendo no Fogo Cruzado" com autoria de Philip Evanson, que traz um relato sobre o cotidiano da violência policial nas favelas cariocas.
É claro que já temos todo um precedente que
apoia isso, mas o que nós temos hoje, o programa da UPP e o termo pacificação,
está ligado diretamente ao programa dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã, que,
aqui, está ligado à doutrina de segurança interna, que foi aplicada durante
toda a ditadura militar. Isso foi criado durante a ditadura, não foi com Duque
de Caxias nem com a escravidão. Apesar de podermos dizer que o Bope [Batalhão
de Operações de Policias Especiais] parece o capitão do mato, na verdade ele é um
soldado armado para enfrentar uma guerra interna, e o inimigo interno é, no
conceito da pacificação de hoje, o povo todo das favelas.
Costuma-se dizer que a referência
da UPP aqui no Brasil veio da Colômbia. Você diz que veio do Vietnã. O que há em
comum na experiência de Brasil, Colômbia e Vietnã?
Têm em comum o cerco, a tomada do
território, o trabalho primeiro militar, seguido de um trabalho social. No Rio
o trabalho social nunca chegou, ficou só no repressivo. Em Bogotá sim, teve
mais trabalho social, que também não foi adiante, mas a repressão foi mais
intensa. O Vietnã foi o modelo, com um programa que se chamava Pacification Hamlets.
Era o cerco das aldeias que eles achavam que estavam sob influência dos vietcongues,
em áreas do Vietnã do Sul, que estava em guerra com o Vietnã do Norte. Os
Estados Unidos apoiavam o Vietnã do Sul, mas havia várias áreas que estavam sob
influência dos vietcongues.
E nesses territórios eles fizeram o Pacification
Hamlets, que seguia muito o modelo que agora a gente vê da UPP: primeiro
uma invasão militar do território, seletivamente eliminando os líderes mais
importantes; depois uma segunda onda de repressão que envolvia tortura não
seletiva - já não eram os líderes, mas qualquer pessoa comum que eles pegavam,
torturavam e jogavam para as outras verem, como parte do terror; e controle de
modo que a aldeia ficasse pacificada pelo medo.
Mas vinha uma segunda etapa que era para
ganhar corações e mentes, com programas de educação, esportes em geral e saúde
também, com muita coisa voltada para crianças. A ideia era dividir a
comunidade, que algumas pessoas que estivessem envolvidas em programas sociais achassem
bom e tentassem ignorar a parte repressiva. E a parte repressiva passava a ser
mais escondida. No caso do Vietnã, quando houve o massacre muito famoso em My Lai,
o povo se rebelou e os Estados Unidos tiveram que fugir quando perderam a
guerra. E o mesmo vai acontecer no Brasil. Chega um momento em que a política
de terror gera mais raiva do que medo. É parte te
da própria sobrevivência: qualquer animal quando está muito acuado se defende
atacando. E essa reação vem quando você começa, por exemplo, a perder
seus filhos.
Qual
é o objetivo da pacificação e quem está sendo pacificado?
A
população que está sofrendo esse processo é aquela que não é útil para o
sistema econômico. Então, se eliminá-la, não faz falta. O que eles estão eliminando
são os jovens pobres, negros, analfabetos que não servem para a mão de obra,
aquela mão de obra fácil, que já tem muito. Em termos de direitos humanos, o
Brasil é um dos piores países. É sempre importante lembrar que estamos em um
país que não está em guerra declarada, embora o ex-governador do Rio de Janeiro
tenha declarado guerra, mas isso foi
da cabeça dele. O Brasil está em situação de rebelião popular, mas não é uma
guerra civil, ainda. Espero que não venha a ser. Se continuar essa pressão, até
pode vir a ser, como é o caso da Colômbia. Muitos casos, como o da Nicarágua,
com o levante de Manágua, que eu vivi quando morei lá, foram causados também
pelo terror, que controla até certo ponto. Depois, quando você não tem mais
esperança, acaba o medo. O levante de Manágua foi quando aconteceu a operação
Herodes, no final do governo contra os sandinistas, na qual eles mandaram
rodear certas áreas mais combativas de Manágua, retiraram à noite das casas os
maiores de dez anos e metralharam na rua, com argumento de que eles já estavam
entrando na Frente Sandinista de Libertação Nacional. É muito parecido com a
forma como a polícia brasileira fala que o jovem vai virar traficante: ‘Nasceu,
vira criminoso’. E eles mataram tantas crianças, que houve uma rebelião total, as
pessoas se juntaram aos sandinistas e fortaleceram o movimento, que ganhou a
revolução. E as pessoas falaram que acabou o medo quando não tinham mais nada a
perder. Hoje, o que temos? O Bope entra nas casas, arromba as portas, bate nas
pessoas... Ouvi relatos de mulheres que falavam ‘Graças a Deus meu marido não
estava em casa, porque quando tem homem eles matam’.
Mas,
nos exemplos que você cita, como o da Nicarágua, havia forças de esquerda
organizada com a qual a população revoltosa se aliou. Como isso se dá no
Brasil?
Nós
temos um exemplo histórico único no Brasil de organização de revolta popular,
que são os quilombos. Infelizmente, não se trabalha muito com isso, mas somos
um dos únicos países que teve uma revolução popular de escravos que chegaram a
fundar cidades, foram mais de 8 mil quilombos. Eu acho que ainda temos essa
cultura nas favelas pelo trabalho comunitário, o chamado mutirão. Existe muito
dos quilombos nesse sentido. Fiquei admirada de ver que, quando começava um
tiroteio nas favelas, apareciam pessoas de tudo quanto era lugar e esvaziavam a
escola em 20 minutos.
Retiravam
mil crianças, não necessariamente deles, mas de vizinhos, e elas ficavam
protegidas até os pais voltarem. É uma organização comunitária muito profunda
de solidariedade. Não é que as pessoas estejam a favor do tráfico ou achem o
tráfico melhor do que a polícia, mas diziam o seguinte: o traficante local é da
comunidade, nós temos menos medo dele porque se você não for diretamente contra
ele, ele não faz nada com você nem com a sua família, já a polícia não, vai
contra todo mundo. A diretora de uma das escolas em que eu estive no Complexo
do Alemão me contou que, durante um
tiroteio muito grande, houve um momento em que o Bope entrou, com Caveirão e
tudo, e começou a dar tiros de dentro da escola. Tiraram até telhas para dar
tiro. E no dia seguinte veio o chefe do tráfico reclamar com ela, dizendo: ‘como
é que você deixa uma coisa dessas? Eu tenho filho nessa escola’. Agora, sobre
rebelião popular, é outra coisa. Acho que você tem razão. Nós não temos
condições hoje de organizar nenhuma resistência – eu nem diria rebelião – com
caminhos dirigidos, como tínhamos esperança, quando
fundamos o PT, de que o partido fizesse esse papel. Seria o caminho da classe
trabalhadora guiada pelo PT para um jeito petista de governar, mudando todas as
referências, não fazendo alianças, inclusive com uma coisa que também não aconteceu,
e que é triste, que era o novo movimento sindical ser autônomo, não ligado a
nenhum governo. Durante um tempo isso foi muito forte, mas hoje a CUT tem dirigentes
no governo, acabou a autonomia do movimento sindical e, de certa maneira, de
outros movimentos também. Então, diminuíram os movimentos sociais como uma
corrente que possa organizar o povo e não existe partido que possa organizar o
povo em geral, porque todos estão vinculados a uma política de interesses. Isso
é muito grave porque a população deixou de acreditar nas instituições. E o que pode
ser uma rebelião popular, então? Pode ser uma explosão social, do tipo queima
tudo, quebra tudo, sem direção, que pode virar fascista ou pode ser só
quebra-quebra e ter um massacre geral de repressão e voltar à situação de
repressão interna das comunidades mais pobres. Até ter outra explosão. Isso acontece
em vários países. Tem que ter um grande líder carismático e todo um movimento
por trás organizado para conseguir isso. E o Brasil não tem mais nem um líder
carismático. Eu acho que o Lula ainda é, mas já não tem mais a força da
condução de um movimento, como tinha antes. Ele podia ter feito isso em 2002,
acho que tinha 80% de aprovação para fazer transformações profundas. Na hora em
que não fez,
em que começou a fazer alianças para governar dentro do modelo político que
existe, tirou essa possibilidade. E hoje em dia acho que o povo está descrente.
Então nós podemos ter uma situação de muita confusão, muita briga na rua, mas
sem uma condução política.
“Em
2007, o então governador do Rio de Janeiro, Sergio Cabral, em defesa da
legalização do aborto, declarou que esta iniciativa seria importante como forma de conter a violência no estado.
Segundo ele, as mães das favelas eram “fábrica de produzir marginal”, declaração
que causou grande comoção na época”.
Você
disse que a política de segurança mudou muito pouco, mas muitas pessoas
acreditaram nas UPPs. Por quê?
Acho
que as pessoas tiveram uma esperança muito grande por chegarem outras coisas
com a UPP. E foi-se vendo, com o passar do tempo, que não era isso. Lembro uma frase
de uma moradora da Rocinha [favela do Rio de Janeiro] que quando perguntada se
era a favor da UPP, respondeu: ‘Estou em silêncio’. E foi indagada que, se estava
em silêncio é porque estava gostando, e ela respondeu que o silêncio
significava o medo. Se você mora lá, diante da violência, não é possível dizer
que é contra, com sua família na mira de uma metralhadora em cada esquina. E essa
população está em um fogo cruzado porque os donos do morro ainda estão lá, mas
os mandantes estão fora da favela. No livro ‘Vivendo no fogo cruzado’, a
entrevista com Beltrame [secretário de segurança do Rio de Janeiro] mostra que
não tem traficante nas favelas, que eles moram fora das favelas, o que existe é
o pequeno tráfico, vendido em envelopinho de R$ 300. O governo não está com véu
nos olhos e sabe quem comanda o tráfico e quem comanda o tráfico é
internacional.
Ainda
é cedo para avaliar a estratégia adotada no Brasil, como defende o secretário de
segurança pública do Rio de Janeiro José Mariano Beltrame? O que já dá para
avaliar hoje?
A
UPP está muito clara. É possível avaliar há muito tempo. O Beltrame, por ser um
intelectual e ter uma certa vivência que vai além da UPP, ele não gosta muito
do programa. Inclusive na entrevista do livro [‘Vivendo no fogo cruzado’] ele
diz que não gosta do nome ‘pacificação’ por chamar muita atenção ao que
realmente é. O que não está claro é por que o governo federal está apoiando. E
por que a Ministra de Direitos Humanos chora quando vê uma notícia como a da mulher
arrastada [Cláudia Silva Ferreira], a do Amarildo, e depois não faz nada de
concreto. Não tem uma intervenção do Governo Federal. E tinha na época do Lula,
isso eu tenho que dar crédito a ele, mas ele acabou se aliando ao Cabral, e a
aliança com o Cabral foi mais importante do que os direitos humanos. Aliás, ele
nos falou isso em uma das entrevistas: que faria aliança até com o diabo se
fosse necessário para o Brasil aprovar as leis sociais para acabar com a
pobreza. ‘E para passar as leis no Congresso, eu preciso do PMDB. E o PMDB no
Rio é o Cabral. Eu tenho que me aliar ao Cabral’, ele disse. Era uma crítica
dele mesmo ao sistema de governo.
Ainda
estávamos no Pronasci [Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania],
mas ele já sabia que o programa iria morrer. O que precisamos é uma reforma
geral, temos que rever a Constituição. Antes eu falava de desmilitarizar, mas
agora eu defendo que a PM deve ser abolida. Precisamos de uma polícia civil
para lidar com o povo, melhorá-la, treiná-la, trabalhar com inteligência, não
pode ser os que estão aí hoje, mas acho muito difícil. A PM está nas mãos dos
governadores.
Por
que o Pronasci não vingou?
Eu
acho que existem interesses por trás que estão vinculados ao crime organizado e
que não querem que o programa dê certo. Realmente não interessa a muita gente
poderosa – eu não diria que está no poder, diria poderosa – do crime organizado
internacional, que está vinculado com o crime local, que isso dê certo. É mais
fácil comprar a polícia, formar miliciano, do que ter uma polícia eficaz que
trabalha com a comunidade e vai prevenir crime. Isso é bem claro. Os
governadores não querem porque têm o Exército nas suas mãos e muitas vezes
defendem interesses não só deles, mas interesses econômicos próprios. Vi uma
notícia de que a senadora Kátia Abreu está apresentando um projeto no Congresso
que elimina o cadastro das empresas que têm trabalho escravo. Isso é muito
grave e mostra como ainda existem interesses até para manter a escravidão.
A
investigação coordenada por Philipp Alston, relator especial da ONU sobre
Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias, aponta diversas iniciativas
como o fim da polícia militar e do caveirão, a instalação da ouvidoria da
polícia de forma séria e a eliminação dos ‘autos de resistência’ ou ‘resistência
seguida de morte’ para o avanço da segurança pública no país. Isso pode
ajudar?
As
sugestões do Philipp são importantes porque vêm da ONU, mas Luiz Eduardo Soares
já falava isso e continua falando. Hoje a OAB já assumiu esse discurso. É
importante que seja a ONU porque há possibilidade de sanções sobre o Governo
Federal. E não vai ter esse papo de que não posso intervir porque a Constituição
não deixa. Isso é difícil porque faz parte da geopolítica internacional não
falar da violência do Brasil, não falar mal da UPP, não fazer sanção. Se o que
está acontecendo no Brasil fosse
na Ucrânia seria um escândalo internacional. Há todo um esquema internacional,
porque querem que o Brasil continue fazendo o seu papel de subimpério. A
doutrina de segurança nacional com desenvolvimento existe ainda e o papel
geopolítico do Brasil como a Escola Superior de Guerra concedeu ainda está
vigente dentro do contexto geopolítico internacional. Não é à toa que o Obama
deu palmadinha nas costas do Lula e falou que ele é o cara. O Lula não entendeu
o que isso quis dizer. Ele é o cara ideal para conduzir o país em uma
geopolítica que interessa aos Estados Unidos, que nunca quiseram reformas
políticas profundas no Brasil. Pode ter o Mujica no Uruguai que eles aguentam,
dão prêmio, mas o Brasil é outro papo. O Brasil tem fronteira em quase toda a
América Latina, domina o Atlântico inteiro, de lado a lado, com isso domina a África,
e isso tudo está dentro da concepção da doutrina de segurança nacional e
internacional da Escola Superior de Guerra.
Entrevistada: MARIA
HELENA MOREIRA ALVES
Maria Helena Moreira Alves, nasceu no Rio de Janeiro, PhD em Ciências políticas do MIT (Massachussetts Institute of Technology), Especialista em Direitos Humanos e Política Internacional. Professora aposentada de Ciência Política e Economia (UERJ), tendo também ensinado no Amherst College , na University of Wisconsin (Madison) e na University of New Mexico, nos EUA.
Texto de : Viviane Tavares
Fonte: www.epsjv.fiocruz.br
Poli | mai./jun. 2014 , pags.11,
12, 13
Nenhum comentário:
Postar um comentário