quinta-feira, 11 de setembro de 2014

DOSSIÊ TRÁFICO DE ESCRAVOS

O injustificável

Apesar do forte viés econômico, os responsáveis pelo comércio de africanos buscavam justificativas na religião e na cultura

Joice Santos
1/9/2014


  • Em 21 de outubro de 1795, D. Fernando José de Portugal e Castro, governador da Bahia, dava o seu parecer sobre a chegada de uma embaixada daomeana e, mesmo com as considerações negativas sobre daquele potentado africano, destacava a sua importância em termos econômicos: “À vista da carta que me apresentaram do rei Dagomé [...] e da consideração de que convém a boa harmonia com este potentado sumamente ambicioso e soberbo, em razão do comércio de resgate dos escravos tão interessante à Real Fazenda e tão necessário para a subsistência da lavoura destas colônias”.
    Os interesses da Real Fazenda e a subsistência da lavoura foram justificativas formadas ao longo do período em que o reino português estabeleceu sua administração no além-mar. Os primeiros argumentos para a submissão de outros povos, entretanto, não tinham relação direta com economia – eles vieram sob a forma de aprovação da Igreja Católica. Através das bulas Dum Diversas (1452), Romanus Pontifex (1455) e Inter Coetera (1456), Roma legitimava a escravização dos infiéis e a conquista e a vassalagem de todas as populações ao sul do Cabo Bojador, no Marrocos, com o objetivo de conversão ao cristianismo. Em um plano mais geral, justificava a expansão marítima portuguesa.
    A expulsão dos muçulmanos e judeus de Portugal em 1496 estimulou o “resgate” dos povos não cristãos. O próprio termo dava conta da tentativa de trazer à luz divina aqueles que estavam na completa ignorância, não os muçulmanos, já que estes já rejeitavam o cristianismo, mas aqueles que desconheciam a palavra divina. Os que seriam resgatados, segundo a lógica do cristianismo europeu, teriam a possibilidade de viver em melhores condições do que na África, em meio à barbárie.
  • Um grande negócio

    Em três séculos e meio, o Brasil recebeu 45% dos africanos trazidos para as Américas. Muitas nações lucraram com o comércio

    Richard Price (Tradução: Rodrigo Elias)1/9/2014
      
    • Ao longo de três séculos e meio de tráfico transatlântico de escravos, cerca de 12,5 milhões de seres humanos foram trazidos à força para as Américas. Entre 1492 e 1820, africanos escravizados constituíram mais de 80% das pessoas que desembarcaram nas Américas. Que nações participaram neste crime sem precedentes contra a humanidade? Que nações lucraram com o comércio?
      Sabe-se que o Brasil recebeu cerca de 45% de todos os africanos trazidos como escravos para as Américas – mais do que qualquer outra nação – e que navios portugueses (e brasileiros) conduziram 47% de todos os africanos escravizados que cruzaram o Atlântico (37% deles foram transportados pelo Atlântico em embarcações que saíram do Brasil – 5% de Pernambuco, 15% da Bahia e 17% do Sudeste brasileiro, particularmente do Rio de Janeiro). E quanto às outras nações?
      Deixando de lado Portugal/Brasil, as maiores nações comerciantes de escravos foram a Grã-Bretanha (cujos navios carregaram 26% dos cativos), França (11%), Espanha (8%), Holanda (4%), Estados Unidos (2%) e os Estados bálticos (menos de 1%). Ao longo de todo esse comércio de escravos, “embarcações do Brasil, Inglaterra, França, Portugal e Holanda carregaram 90% de todos os cativos transatlânticos removidos da África”, como escreveram em seu atlas David Eltis e David Richardson, cujas estatísticas tomo como base para este artigo.

    Tradição de açoite

    Escravidão era uma prática comum na África mesmo antes da chegada dos europeus ao continente

    Alexandre Vieira Ribeiro
    1/9/2014

    • Com quase quatro séculos de duração e mais de 12 milhões de seres humanos embarcados na costa africana, o tráfico transatlântico de escravos foi o maior fluxo migratório forçado da História, pelo menos até o século XIX. E os beneficiários desse comércio, rapidamente transformado em um dos principais motores da economia mundial, não estavam exclusivamente na Europa e na América. Os homens e as mulheres embarcados nos navios negreiros eram capturados e negociados por africanos. O tráfico foi um negócio afro-europeu. 
      A escravidão e o comércio de pessoas na África existiam antes da chegada dos europeus. Comerciantes atravessavam o deserto do Saara e o mar Vermelho com carregamentos de cativos que eram ofertados em mercados do norte da África e do Oriente Médio. Há notícias de envios de escravos para o Extremo Oriente, onde eram vistos como bens exóticos. A inserção dos europeus nesses mercados fez a atividade ganhar vulto. Começou ainda no século XV, como uma atividade paralela da expansão portuguesa pela costa ocidental da África. No contato com os povos subsaarianos, pequenas levas de escravos eram adquiridas e enviadas para Lisboa, Algarve e outras regiões do Mediterrâneo. No século seguinte, a opção pelo uso de mão de obra escrava nas colônias da América causou a explosão da demanda por africanos. 
      Em diversos pontos da costa africana, os europeus encontravam indivíduos dispostos a vender escravos. A diversidade de povos do continente impedia que se forjasse entre eles uma identidade comum. Não se reconheciam como iguais. Constituíam laços de solidariedade por meio de linhagens, clãs e Estados, e escravizavam os diferentes. O escravo era a única forma de propriedade privada na África, pois a terra era considerada um bem coletivo. A escassez de mão de obra possibilitou a disseminação de escravos por todo o continente, principalmente na realização de trabalhos agrícolas. Exerciam também funções de mineradores, artesãos, serviços domésticos e até mesmo militares. 

    • Investimento de risco

      Preservar a mercadoria era indispensável ao comerciante de escravos que não quisesse ter prejuízo com o alto custo do negócio

      Daniel B. Domingues da Silva
      1/9/2014

      • O tráfico de escravos não era a atividade mais lucrativa do mundo. Esse comércio demandava altos investimentos e envolvia riscos consideráveis. Nem todos o viam como uma atividade moralmente aceitável e havia outras áreas que podiam gerar lucros maiores, como o comércio de especiarias, tecidos, metais e pedras preciosas. Ainda assim, valia a pena: durante mais de três séculos o tráfico manteve-se como um negócio atraente e viável. 
        Desde meados do século XV, alguns africanos escravizados já vinham sendo transportados para a Europa. Mas o tráfico se transformou em negócio lucrativo somente quando os europeus espalharam a cana-de-açúcar nas Américas e nas ilhas do Atlântico – como Madeira e São Tomé e Príncipe – no final daquele século e no início do seguinte. O açúcar era considerado uma mercadoria de luxo, e o alto preço pelo qual era vendido cobria os custos da sua produção.
        A produção do açúcar facilitava também a colonização de territórios onde os europeus demoraram a encontrar metais ou pedras preciosas. Oriunda das regiões tropicais do sudeste asiático, a cana-de-açúcar adaptou-se bem ao clima das ilhas atlânticas e das Américas, e serviu como principal artigo de exploração econômica em várias colônias, inclusive no Brasil. 
      • Rumo ao Rio da Prata

        Sem feitorias escravistas na África, os espanhóis compravam cativos de Portugal, via portos brasileiros, para os atuais Uruguai e Argentina

        Alex Borucki (Tradução: Carolina Ferro)
        1/9/2014
        • Este episódio iniciou um processo de 250 anos, no qual os espanhóis do Rio da Prata, assim como os “riopratenses”, se relacionaram com o Atlântico português com o objetivo de comprar africanos escravizados. Como os espanhóis não possuíam feitorias escravistas na África nem contatos diretos com traficantes africanos, a Coroa estabeleceu contratos com traficantes europeus para suprir suas colônias com escravos até 1789, quando começou a desenvolver este tipo de comércio em embarcações espanholas diretamente da África. 
          Apesar de o Rio da Prata não ter uma sociedade baseada exclusivamente na mão de obra escrava, os cativos eram fundamentais para as fazendas pecuaristas e as lavouras de trigo. Também desempenhavam a maior parte dos ofícios urbanos, da carpintaria à sapataria. Os comerciantes constituíam a classe principal daquela sociedade, inclusive acima dos proprietários de terra, e vendiam escravos para o centro do império espanhol na América do Sul, Potosí e Lima, através de rotas comerciais que iam para o interior do que hoje são a Argentina, a Bolívia, o Paraguai, o Chile e o Peru.

        • Buenos Aires tinha cinco anos de fundação quando, em 1585, o cabildo (similar à câmara municipal) solicitou à Coroa espanhola permissão para trazer escravos de Angola. O bispo de Tucumán, Francisco de Vitória, enviou uma expedição comercial de Buenos Aires até o Brasil. Ela passou por São Vicente, Salvador e Rio de Janeiro. Quando retornou a Buenos Aires, em 1587, trazia, além de mercadorias, cerca de 60 escravos. Foram os primeiros africanos a chegar ao Rio da Prata em uma expedição escravista.

      • Injustiça seja feita

        Acusado de traficar africanos ilegalmente, o comerciante José Gonçalves escapa da prisão e reclama de prejuízo e perseguição

        Nilma Teixeira Accioli
        1/9/2014
        • Acusado de tráfico de escravos, preso e depois absolvido, José Gonçalves da Silva não se fez de rogado: durante 13 anos reuniu artigos de jornais, cartas, discursos de deputados, documentos oficiais e mandou-os imprimir, em 1864, na tipografia da Universidade de Coimbra, onde seu filho estudava Direito. 
          “José Gonçalves da Silva à Nação Brasileira” é o título do seu libelo, hoje o único documento conhecido de autoria de um acusado de tráfico de escravos. Nele, o autor denuncia o que chama de “grande injustiça”, reivindicando indenização pelos danos sofridos com o processo, que teria provocado um “descomunal abalo” em sua fortuna.
          Quando desembarcou no Brasil, em 1813, ele tinha entre 11 e 12 anos. Fazia parte de uma geração de meninos portugueses que vinham tentar a sorte no Rio de Janeiro, sede da monarquia desde 1808. Começou trabalhando como caixeiro. Em 1839 já havia construído fortuna. Atuava em Cabo Frio, “cuidando de seus interesses e do seu sogro João Moreira”. Foi quando fez uma petição ao chefe de polícia solicitando proteção: sentia-se ameaçado por ter que cobrar altas quantias a devedores. Sua presença em Cabo Frio, justamente no período em que o tráfico deslocou-se para lá, é sintomática. Desde que o tráfico de escravos para o Brasil se tornara ilegal, em 1831, com a “lei Feijó-Barbacena” – primeira proibição de entrada de escravos africanos nos portos brasileiros – cresciam os desembarques clandestinos na região.

        A vontade é a lei

        Assim que proibiu o comércio de escravos em suas possessões, a Grã-Bretanha passou a convencer outras nações a fazerem o mesmo

        Juliana Barreto Farias
        1/9/2014

        • Os imensos caldeirões de cobre postados no convés do solitário navio mercante comprovavam: a embarcação era usada “no carregamento de africanos da costa para o comércio proibido de escravos”. E o capitão do brigue Wizzard, da Marinha de Guerra de Sua Majestade Britânica, não teve dúvidas. Ao avistá-los no amanhecer de 27 de dezembro de 1838, decidiu iniciar uma “caçada” nas proximidades da costa de Cabo Frio, litoral da província do Rio de Janeiro. À força, oficiais e soldados invadiram o navio suspeito e rapidamente tomaram seu controle. Assim que abriram as escotilhas do porão, depararam com uma visão aterradora: 230 africanos – homens, mulheres e crianças – se acotovelavam na escuridão.
          Desde pelo menos 1810, autoridades inglesas e brasileiras patrulhavam águas americanas e africanas em busca de embarcações envolvidas no tráfico ilegal de escravos. Depois de abolir o comércio negreiro em suas possessões, no ano de 1808, o Império Britânico partiu para uma acirrada campanha para que todas as outras nações também desistissem daquele lucrativo negócio. E não mediu esforços para alcançar seus objetivos. 
          Os questionamentos em torno da escravidão e, sobretudo, do tráfico de africanos mobilizavam filósofos, intelectuais e políticos europeus desde a primeira metade do século XVIII. Ao lado de pensadores como Montesquieu, Rosseau e Adam Smith, grupos religiosos protestantes, como os quakers, atacavam a imoralidade da instituição escravista e do comércio que a sustentava. No final do século, era difícil encontrar na Europa quem a defendesse. Especialmente com as repercussões dos ideais de igualdade e liberdade das revoluções Francesa (1789) e Haitiana (1791). Ainda assim, mesmo com seu profundo apelo moral, essa campanha antiescravagista não estava baseada numa postura pró-africana ou mesmo na crença da igualdade dos negros. Pelo contrário. Alguns de seus líderes e divulgadores apostavam em ideias e práticas “racistas”.


      • Acabou-se o que não era doce

        Mesmo com o comércio proibido, embarcação com escravos do Zaire tentou desembarcar em Pernambuco, mas foi surpreendida

        Gilberto da Silva Guizelin
        1/9/2014

        • Já haviam se passado cinco anos desde a implantação da Lei Eusébio de Queirós – a segunda a proibir o tráfico de escravos para o Brasil – quando, em 11 de outubro de 1855, nas proximidades da cidade litorânea de Serinhaém, sul de Pernambuco, contrabandistas tentaram introduzir no país 210 escravos. Eles vinham a bordo de um palhabote, pequena embarcação de dois mastros, veloz e com bom espaço para o transporte de mercadorias. 
          Alertada de antemão pelas autoridades britânicas em Angola, a Marinha do Brasil já aguardava o desembarque desde o final de setembro, pelo que havia intensificado o patrulhamento do litoral pernambucano, região que já se sabia ser o destino final do palhabote saído da foz do rio Zaire. Surpreendidos pelo patrulhamento reforçado daquele litoral, os traficantes foram obrigados a abandonar a carga humana que traziam para se salvarem da prisão e do julgamento pelo crime de contrabando de “braços de trabalho” africanos.
          O frustrado desembarque de Serinhaém costuma ser descrito – e com razão – como o capítulo final dos 300 anos de história do “infame comércio” de gente entre uma costa e outra do Atlântico Sul. Mas essa versão oculta uma intrincada trama política e policial. 
      • Uma velha novidade

        Europeus conheceram a escravidão na Antiguidade, mas apenas na Época Moderna a transformaram em uma complexa estrutura

        Cristiane Nascimento
        3/9/2014

        • “É essencial que cada escravo tenha uma finalidade claramente definida. É tanto justo e vantajoso oferecer liberdade como um prêmio [...]. Também deveríamos deixar que tenham filhos que sirvam como reféns; e, como é de costume nas cidades, não deveríamos comprar escravos das mesmas origens étnicas”. O conselho poderia ser dado a qualquer jovem que desejasse administrar escravos na América durante a Época Moderna, mas a admoestação foi dada por um discípulo de Aristóteles em um tratado do final do século IV a.C.
          Por muito tempo o continente africano tem sido reconhecidamente o lugar que mais exportou, por séculos, pessoas para servirem de mão de obra escrava para os quatro cantos do mundo. Pesquisas arqueológicas, registros de portos, cartas e tantos outros documentos atestam a violência e a extensão deste comércio. Nem por isso, entretanto, a África pode ser considerada o único berço da escravidão.
          Impérios como o egípcio, o assírio e o babilônico tinham como prática recorrente o uso do trabalho compulsório. O código de Hammurabi (1792-1750 a.C), um conjunto de leis do período babilônico antigo, por exemplo,  dedica alguns de seus parágrafos à regulamentação da compra e venda de escravos. Na sociedade babilônica antiga os escravos eram minoria, convertidos a esta condição após se tornarem prisioneiros de guerra em campanhas militares. Havia ainda homens livres que, impossibilitados de pagar suas dívidas, vendiam esposas, filhos ou a si mesmos como escravos. 
        • FONTE DIGITAL: http://www.revistadehistoria.com.br/revista/edicao/108

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