quarta-feira, 2 de julho de 2014

Parcerias público-privadas na educação: responsabilidade social ou mercado?

EDUCAÇÃO PÚBLICA, LÓGICA PRIVADA
Parcerias com instituições privadas pautam projetos da escola pública e criam nichos de mercado para empresas
 
  
Aumentar a “participação do setor privado e da sociedade civil na educação e no melhor gerenciamento de escolas”: esse foi um dos ‘conselhos’ que o Brasil recebeu do Banco Mundial no relatório sobre a estratégia de assistência ao país em 1997. Naquele momento, o Banco propunha estabelecer uma “parceria de longo prazo” para universalizar a educação primária no Brasil nos dez anos seguintes. Com a ‘ajuda’, seria garantida a continuidade não só das “políticas de educação”, mas também da “priorização dos gastos pelas administrações”. E o documento já apontava que o caminho para atingir esses resultados era o “incremento do tempo de instrução e da qualidade do ensino, incluindo a ampliação de oportunidades de aprendizado para os pobres”. Dezesseis anos depois, a universalização da educação básica ainda é uma meta do Plano Nacional de Educação, mas a presença da iniciativa privada na educação pública cresceu de forma significativa.
Para alguns, isso representa o reconhecimento de que a educação é responsabilidade de todos, além de um avanço no papel das empresas, que passam a visar à melhoria da sociedade como um todo e não apenas ao lucro. Para outros, trata-se do que se tem chamado de um processo de privatização ‘não-clássica’, que se dá não pela venda de bens estatais, mas por dentro, pela adoção, por exemplo, de uma gestão privada e de abordagens pedagógicas que respondem à lógica do mercado.
Dados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, em 2011, 1.152 municípios brasileiros mantinham algum convênio ou apoio (sem vínculo contratual) com o setor privado na área de educação. Segundo a assessoria de imprensa do IBGE, esse estudo, no entanto, não distingue o que diz respeito a empresas e a instituições sem fins lucrativos. Mas alguns críticos apontam que, nesse processo, a ação ‘voluntária’ das instituições não-lucrativas e a rentabilidade das empresas caminham juntas. “Esse movimento contempla anseios do grande capital não só porque socializa as crianças à sua maneira, mas também porque abre nichos enormes de negócios. Os meios de comunicação estão vendendo materiais para as escolas, inclusive atraindo o capital internacional. Editoras vão organizando materiais, cartilhas,  programas de TV e mecanismos de avaliação a partir dos descritores do Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica]”, analisa Roberto Leher, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A organização mais representativa desse crescimento da participação do setor privado na educação brasileira é o Movimento Todos pela Educação (TPE). No seu site, o TPE, criado em 2006, se define como “um movimento da sociedade civil brasileira”, “apartidário e plural”, que atua na produção de
conhecimento, no fomento e na mobilização, buscando assegurar “a todas as crianças e jovens o direito à Educação Básica de qualidade”. Segundo Leher, a grande convocatória para a criação do Todos pela Educação veio do Itaú, que seria até hoje uma liderança – entre as dez instituições mantenedoras do TPE, três pertencem a esse Grupo: a Fundação Itaú Social, o Instituto Unibanco e o Itaú BBA, que é o seu banco de “atacado, investimentos e tesouraria institucional”.
Ainda de acordo com Leher, esse movimento ganhou um salto de qualidade quando se associou aos objetivos do Movimento Brasil Competitivo, criado cinco anos antes por Jorge Gerdau, do Grupo Gerdau, que atualmente é presidente do Todos pela Educação e tem sua empresa como uma das mantenedoras dessa instituição. As outras mantenedoras do TPE são o banco Santander, Dpaschoal, Faber Castell, Suzano Corrêa, Fundação Bradesco e Instituto Camargo Corrêa. O Todos pela Educação apresenta ainda uma lista de outras 20 instituições parceiras, entre empresas e organizações sem fins lucrativos, além do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento).
Nesse rol, estão representados alguns dos grupos com maior presença nas políticas públicas e no mercado da educação no Brasil. Um exemplo é o mercado editorial. De acordo com dados do Portal da  Transparência do governo federal, a empresa que, em 2012, mais recebeu recursos de gastos diretos da União para a edição de livros – que inclui a “produção, aquisição e distribuição de livros e materiais didáticos e pedagógicos para a educação básica”, a “distribuição de materiais e livros didáticos para o ensino médio” e a “distribuição de acervos bibliográficos para a educação básica” – foi a Editora Ática (mais de R$ 133 milhões), pertencente ao Grupo Abril, que participa do Todos pela Educação por meio da Fundação Victor Civita.
O terceiro lugar desse ranking é do mesmo grupo, com a Scipione, que teve uma receita de mais de R$ 59 milhões em compras do governo federal nessas rubricas. Na segunda colocação (mais de R$ 100 Milhões), vem a Editora Moderna, que pertence ao Grupo Editorial espanhol Santillana, representado como um dos parceiros do TPE pela sua fundação. A editora Globo, parte das organizações que têm a Rede Globo e a TV Futura como parceiras do Movimento, aparece na nona posição, com um faturamento próximo de R$ 9 milhões. A Saraiva, que também figura como parceira do TPE, aparece com o segundo maior montante no item relativo ao gasto com “edição integrada à impressão de livros” (R$ 89 milhões) e na quarta posição quando se trata da “produção, aquisição e distribuição de livros e materiais didáticos e pedagógicos” apenas para a educação básica (R$ 77 milhões).
Embora, no geral, com valores muito menores, existem também registros de gastos diretos para algumas das instituições sem fins lucrativos parceiras do Todos pela Educação. Para essas mesmas ações ligadas a livros e materiais didáticos que são de distribuição gratuita, a Fundação Victor Civita, por exemplo, recebeu diretamente, em 2012, mais de R$ 2 milhões.
Além de programas educacionais desenvolvidos, em sua maioria, por instituições privadas sem fins lucrativos, tem crescido na escola pública também a presença de materiais didáticos e ‘sistemas de ensino’, elaborados e vendidos por empresas privadas especializadas.
No artigo ‘Mercado editorial escolar no século XXI: livros didáticos, apostilas e formação de professores’, Célia Cristina Cassiano, doutora em educação pela PUC-SP, mostra que as editoras brasileiras de livros educativos estão concentradas em seis grandes grupos empresariais: Saraiva, Abril, Santillana, IBEP/Cia. Editora Nacional e FTD. Ela destaca ainda a tendência dessas empresas de entrarem também num  mercado que tem ganhado espaço na educação pública: o desenvolvimento de ‘sistemas de ensino’, que se apresentam como “soluções educacionais completas” para as escolas. O grande destaque nessa área, no entanto, não faz parte de nenhum desses grandes grupos editoriais: trata-se do Grupo Positivo, que atua na educação pública por três caminhos principais: o sistema de ensino ‘Aprende Brasil’ e a ‘Divisão de Tecnologia Educacional’, que são comercializados para municípios de todo o país, além dos livros que fazem parte do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). De acordo com o Portal da Transparência, o governo federal teve, em 2012, cerca de R$ 38 milhões em gastos diretos com três empresas do Grupo: de informática, editora e gráfica.
Os sistemas de ensino e materiais didáticos produzidos fora da escola são um dos aspectos  frequentemente mencionados quando se fala na diminuição da perda da autonomia da escola e do professor.
Essa expansão também põe em discussão o conceito de ‘didático’. Um exemplo atual de discordância nessa área se dá no município do Rio de Janeiro, onde a prefeitura gastou mais de R$ 1 milhão na compra de 20 mil unidades do jogo 'banco imobiliário' em uma edição especial sobre o Rio de Janeiro para distribuir entre os alunos da rede. O município cedeu para a Estrela o uso da marca ‘cidade olímpica’ para  que fosse produzido um jogo ambientado nos bairros do Rio que, entre outras coisas, apresenta obras e realizações do prefeito Eduardo Paes. “O que um aluno vai aprender calculando quanto lucro ele pode ter adquirindo uma Clínica da Família ou cobrando pedágio na Transoeste?”, questionou em nota, o Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro (Sepe).
 
Concepções: educação integral
Para Andrea Bergamaschi, o principal problema que a educação pública brasileira enfrenta hoje é a questão da qualidade. Mas o que isso significa?
De acordo com Isabel Santana, o Itaú Social só concebe a qualidade acompanhada pela equidade. “Não serve uma rede que tem bom Ideb com poucos alunos bem e muitos alunos mal”, exemplifica. Ela aponta como “boa educação” aquela que dá ao aluno o direito de aprender tanto os conhecimentos formais quanto os outros tipos de conhecimentos. Por isso destaca a importância da educação integral “mais ampla possível”.
Andrea explica que o Todos pela Educação ‘mede’ a qualidade da educação pelos patamares básicos de capacidade desenvolvida pelos estudantes em português e matemática, que são as disciplinas aferidas pela Prova Brasil. Essa dimensão da educação está representada na meta 3 do Movimento –‘Todo aluno com aprendizado adequado à sua série’ –, que é destacada no site da instituição como a de maior relevância e que constitui o maior desafio do TPE. “Qualidade não é só atingir números. Qualidade é proporcionar o aprendizado que o aluno deve ter na idade certa”, explica.
Nessas definições de qualidade da educação estão presentes duas frentes de atuação que têm sido priorizadas pelo MEC em relação e que contam com a participação direta de alguns dos maiores institutos e fundações que se dedicam a essa área: a educação integral e a distorção idade-série.
Educação integral é um dos “temas de atuação”, por exemplo, da Fundação Itaú Social, que, segundo o site da instituição, “estabeleceu parcerias com secretarias de Educação por todo o país, colaborando na estruturação de políticas de educação integral e na formação dos profissionais que atuam em sua implementação”.
O relatório de 2011 da Fundação cita parcerias com as secretarias de Belo Horizonte (MG), onde o projeto recebeu o nome de ‘Escola integrada’ e atendia, naquele momento, 47 mil estudantes; Goiás, onde, segundo o texto, ao longo de 2012 cerca de 350 profissionais de 120 escolas de tempo integral participariam de projeto que visa à inclusão de “uma nova matriz curricular mais diversificada, com maior integração entre o currículo básico e as atividades complementares”; município do Rio de Janeiro (RJ), onde esse mesmo processo aconteceu com 91 escolas de tempo integral e já se renovava para 2012; e em Maringá (PR), envolvendo as 19 escolas com essas características, numa atuação que visa também “expandir o repertório didático dos professores”.
Além das parcerias locais, a Fundação tem dois grandes projetos na área de educação integral.
Um é o Programa Jovens Urbanos, que desenvolve oficinas sobre diferentes temas com jovens que vivem  nas periferias dos grandes centros urbanos considerados em situação de vulnerabilidade que, no final, devem implementar um projeto de intervenção. O Programa está presente em “territórios” de São Paulo, Minas Gerais e, segundo o relatório, seria desenvolvido no Espírito Santo, em 2012, a partir de uma parceria com a secretaria estadual de educação. A outra iniciativa é o Prêmio Itaú-Unicef que, desde 1995, apoia organizações não-governamentais que trabalham em parceria com políticas públicas para promover a educação integral de crianças. “As ONGs são premiadas pela qualidade das ações realizadas e pelo nível de articulação com órgãos responsáveis pela implementação de políticas de educação e de assistência social, pela sintonia com a legislação vigente, pela relevância diante do contexto local e pelo potencial de transformação social”, explica o relatório de 2011 da Fundação, segundo o qual, naquele ano, o Prêmio teve um número recorde de procura – 2.922 organizações se inscreveram; cinco foram premiadas com R$ 20 mil cada. Criado em 1995, o Prêmio Itaú-Unicef foi, segundo o site da instituição, “um dos pioneiros no país a estimular essa prática – incorporada pelo MEC com o Programa Mais Educação”. Uma das instituições sem fins lucrativos com maior presença na educação pública brasileira, o Instituto Ayrton Senna (IAS) também mantém três programas de “educação complementar”: o ‘Educação pelo esporte’, o ‘Educação pela arte’ e o ‘SuperAção jovem’. Embora o carro-chefe da instituição seja o programa 'Acelera Brasil', que fez a aproximação com a educação formal, Inês Miskalo, coordenadora de Educação Formal do Instituto, lembra que eles nunca desprezaram “outros meios de desenvolvimento da criança”. “À medida que o sistema educacional foi avançando e hoje você tem atividades pensando numa educação de tempo integral, automaticamente vai-se levando para dentro da escola toda a aprendizagem que a gente teve fora. Então, o programa de esporte está hoje passando por uma reformulação para atuar nos horários de educação física, com o professor regular da disciplina. A arte vai passar pelo mesmo processo. O programa SuperAção, que acontecia num horário fora da aula, hoje começa a fazer parte do currículo escolar”, explica. Em 2007, essa ideia de educação integral virou política pública de orientação federal por meio do Mais Educação. Criado por um decreto interministerial, esse programa apoia as escolas públicas que quiserem oferecer “ações socioeducativas no contraturno escolar”, que ampliem o tempo do aluno dedicado à escola em áreas como esporte e lazer, artes, comunicação e uso de mídias, saúde e educação econômica. Foi voltado, originalmente, para as escolas com menor Ideb, mas vem sendo ampliado. Em 2011, passou a fazer parte de uma parceria com o Ministério do Desenvolvimento Social que prioriza a oferta do Programa nos municípios que concentram grandes contingentes de beneficiários do Bolsa Família. Para Vania Motta, o que essas ações e políticas fazem é promover o horário integral e não uma educação de fato integral, já que, segundo ela, trata-se de um amontoado de vários projetos, sempre com caráter provisório. Destacando o fato de se referirem a “atividades socioeducativas”, Leher e Olinda Evangelista também destacam, no artigo, que essas atividades nada têm a ver com a valorização do conhecimento. E completam: “O que esta mudança paradigmática não revela é que muitas das ‘atividades socioeducativas’ do Mais Educação são desenvolvidas por monitores sem vínculo empregatício a serviço de organizações que, por meio de uma complexa cadeia de entidades da chamada sociedade civil, acabam desembocando nas grandes Organizações Sociais vinculadas ao TPE e, também, nas confissões religiosas”.


Por: Cátia Guimarães

Revista Poli edição  mar/abr.2013, paginas 2,3 e 7,8.


 


 
FONTE: http://www.epsjv.fiocruz.br/upload/EdicoesRevistaPoli/R34.pdf
 

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